Todos tem um limite, mesmo os jornalistas e fotojornalistas e embora seja difícil de chegar a ele, hoje eu cheguei.
E passei dele.
Começo esse texto com dois pedidos de desculpas:
1º — Sei que várias vezes critiquei a postura de alguns fotógrafos que se deixavam levar pelo calor da situação quando deveriam apenas observar e registrar, mas hoje fui eu quem se viu nessa situação;
2º — Não irei usar uma linguagem jornalística neste texto. Já que cruzei a fronteira uma vez, vou aproveitar a viagem, então se preparem, não vou segurar a língua.
Pois bem, já sabia que hoje seria um espetáculo bizarro, cheio de coisas que, como diria um grande amigo meu (abraço Américo), fariam um macaco vomitar.
Normalmente eu parto da política de apenas registar fotograficamente os eventos sem interferência nenhuma, sem questionar ou discutir além do necessário para o trabalho, mas acho que todo mundo tem um limite além do que, já deixei para trás faz tempo a ilusão de que existe o jornalismo imparcial. Aliás, essa foi uma descoberta bacana, porque pude entender que posso me posicionar e ainda assim fazer um trabalho jornalístico decente.
Intervenção realizada por membros dos Jornalistas Livres criticando a violência na periferia e fazendo referência aos assassinatos ocorridos neste final de semana em Barueri e Osasco
É claro que não sou ingênuo de achar que essa ação por mais que tenha um fundo crítico e politizado, teve sua parte de provocação, mas até então isso não deveria ser problema já que todos batiam no peito ao dizer que era um protesto pacífico e democrático (precisam urgentemente rever o conceito de democrático) além de sequer terem mencionado “aqueles que não devem ser nominados” (só para não ficar dúvida, estou falando de Dilma, Lula e o PT).
Durante a performance, quando a atriz estava deitada, duas pessoas que são dessa gente de bem resolveram participar da intervenção (#sqn) da forma que esse povo entende por democracia: Uma senhora, na casa dos seus 40 anos, muito bem vestida resolveu pintar a testa da atriz com as tintas que ela carregava. Um outro rapaz, mais eufórico, pegou uma caneca de plástico, também cheia de tinta, e atirou contra ela.
A atriz, como uma boa morta, não se mexia, não reclamava, apenas ficava ali inerte, cumprindo o seu papel e jogando na cara deles uma realidade que praticamente todos ali faziam questão de ignorar.
Manifestantes pintam e atiram tinta contra atriz durante intervenção criticando a violência contra os jovens negros da periferia
Quando a atriz se levantou já no encerramento da intervenção, ela ficou ali parada, em pé, com o olhar perdido e ignorando os gritos que a chamavam de bandida, vagabunda, ladrão (sim, eles tem problemas em concordar os gêneros eu acho) e outras coisas.
Não bastasse, mais um manifestante resolveu colar na testa dela um adesivo, numa pífia tentativa de chamar a atenção ou, a probabilidade que mais me assusta, de realmente achar que estava fazendo algo bom, algo correto.
Depois disso, me dirigi ao cidadão que jogou a tinta na atriz e à mulher que havia pintado o rosto dela. Ambos estavam próximos (talvez a gente realmente atraia aquilo que emanamos…) e pedi se podia gravar uma declaração deles sobre o que havia acontecido ali e também sobre o que fizeram.
O cara (vou chamá-lo assim já que nem o nome quis dizer) diz “Não cara, melhor não” e a mulher diz “não quero, não autorizo”. Nessa hora perguntei porque eles tiveram peito de jogar a tinta, mas não tinham a mesma coragem para falar e serem filmados e a resposta foi o primeiro passo além do meu limite.
O cara me chama de canto e fala baixo em meu ouvido que não queria falar porque ele já havia sido filiado a partidos políticos e isso poderia pegar mal para ele. Bizarro não? Jogar tinta em uma pessoa não pega mal, mas dar uma entrevista falando o porque de ter feito isso pega muito mal.
A dama da paulista disse que fez isso porque era uma provocação dos petistas, quando retruquei dizendo que aquele ato não tinha relação com o PT e era uma crítica aos assassinatos do final de semana. Com toda a educação do mundo (e arrogância de um burguês no sentido literal da palavra) ela me disse que “Ali não era lugar pra fazer isso. Se quisessem protestar que fossem fazer isso lá em Osasco e não ali na Paulista”. Com um profundo pesar (pelo tipo de ser humano que ela era) perguntei se a violência na periferia não era uma pauta que merecia ser levada às ruas, mas ela disse que “não, coisa da periferia tem que ser resolvida na periferia” e após proferir essa frase abundante em bondade, democracia e justiça (vale lembrar que virava e mexia se ouvia nos trio elétricos alguém dizendo que eles não estavam lá por se preocuparem com seus próprios umbigos, mas sim por querer o melhor para o país todo. Aham… senta lá Cláudia!) ela encerrou o assunto dizendo “Você não concorda comigo e eu não concordo com você, então não tem porque conversarmos.”. Não sei se só para mim isso soou como você está comigo ou está contra mim.
Selfies e fotos com os policiais da Tropa do Choque que posavam ao lado dos blindados recém adquiridos foram frequentes durante todo o dia
Saí dali e fui até a esquina onde os atores haviam ido para retomar a intervenção, próximo de um destacamento de policiais.
Novamente foram seguidos por várias pessoas que continuavam com seus gritos de ordem (aqueles que falei antes lembram? Petistas, vagabundos, ladrões, miseráveis e outros. Lembraram?). Nesse momento eu já estava bem frustrado e de saco cheio, mas ainda mantinha a determinação de tentar apenas observar até que novamente escuto um senhor com os seus 60 e tantos anos chamar eles de petistas. Parei e perguntei (acreditem, de forma educada. Pasmem!!!!) se ele sabia que aquilo era uma crítica a chacina que havia acontecido em Osasco e o que ele achava disso.
“Foi muito bom que tenham feito isso. Tinha que matar mesmo.”.
Não dava mais, aí fodeu tudo e a paciência e tolerância foram para o saco. Um outro senhor, da mesma faixa etária, veio falar que essa chacina tinha sido de traficante matando traficante e eu disse que não, com certeza aquilo era trabalho de policiais.
Pronto, acabou a educação. Entre perguntas se eu sabia o que era um inquérito e que os jornais só mentiam, a coisa foi chegando ao ponto em que eu virei “um bosta” e logo depois eu já era a escória e sei lá mais o que. Nessa hora confesso que entrei na pilha dele e fiquei de saco cheio e comecei a discutir.
Errei? Talvez, mas não tenho sangue de barata e até que demorou para ele ferver. Era insano discutir com ele, argumentos desconexos, um ódio cego e sem sentido. Quando ele me xingou a primeira vez eu perguntei se eu o havia ofendido ou se ele me conhecia para afirmar esse tipo de coisa. Disse que eu era um petista e que eu estava ali fotografando de graça. Então eu disse que não, que eu estava fazendo fotos para uma agência de fotografia e ele me pergunta se eu não quero então fotografar de graça um aniversário ou casamento para ele.
Alguém entendeu?
Nessa hora eu já comecei a tirar sarro e dizer que ele devia ir jogar bingo ou sentar na praça para jogar milho para os pombos ao invés de ir lá ficar falando besteira, mas como não sou ruim, também disse para ele maneirar porque naquela idade ele já devia tomar cuidado com a pressão e não ficar tão exaltado (ok, fui irônico sim caso alguém não tenha notado).
Seria engraçado se não fosse trágico você ouvir um senhor de idade (mas lembrem-se, os canalhas também envelhecem) dizer:
— Esse é um protesto pacífico e respeitoso. Seu bosta!!!!!
Se isso é um protesto pacífico e respeitoso, gostaria de saber qual a visão dele de um protesto agressivo e desrespeitoso. Não, pensando bem não quero não.
Manifestante fantasiado como Capitão Brazuca” e outro pedindo ajuda ao presidente norte-americano Barak Obama
A essa altura, outros amigos fotógrafos interviram para tentar acalmar os ânimos e também começaram a ser agredidos verbalmente pelas pessoas que se amontoavam ali.
Os policiais próximos do tumulto fizeram o que passaram o dia todo fazendo: Ficaram de paisagem.
Os gritos cessaram e segundo alguns que estavam ali e afirmaram categoricamente, eu era um petista. Engraçado pensar que eu nem sabia que o era, até porque eu justifiquei meu voto nas últimas eleições (mas votaria na Dilma se tivesse votado).
Hoje senti na pele a tal da polarização que tanto se fala. Ou você é uma coisa ou você é outra e ponto final. Alguns amigos disseram que eu havia vacilado em entrar na pilha do velho (velho no sentido de retrógrado e anacrônico e também da idade), mas chega uma hora que não dá para ouvir tanta besteira e se calar.
Sempre pensei que o trabalho de um fotojornalista é o de mostrar a realidade e provocar mudanças, mas além de disso acho que o principal é não perder a capacidade de se indignar com as injustiças.
Posso ter errado do ponto de vista jornalístico, profissional, porém não me arrependo e faria tudo de novo se fosse necessário.
O Brasil está ferrado como está? Sim, sem dúvida alguma, mas se essas pessoas são a única solução, então infelizmente o país tem um triste futuro pela frente.
E quando eu estava indo embora, cutucaram meu ombro. Uma moça que estava ali e que eu nunca tinha visto. Ela estava ali para encontrar com o namorado e não me conhecia, mas quando me virei para ela, me deu um sorriso e disse:
— Parabéns pela coragem em enfrentar eles pelo que é certo.
Errei? Talvez tenha errado, mas quer saber? Foda-se, não tem preço a consciência tranquila por ter feito o que é certo.
Ou pelo menos o que acredito ser.
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