Moradores da cidade mais sedutora dos EUA, que recebeu 67 milhões de visitantes em 2019, entram na terceira fase de reabertura social com a missão de recuperar o que sempre teve de tradicional e belo — e que jamais deu errado
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Paulistanos, paulistas e boa parte dos brasileiros de outros estados acreditam que São Paulo não pode parar. Verdade. Mas, no caso de Nova York, a Big Apple, a Grande Maçã, quem defende a tese é o mundo todo.
Em meio à pandemia de coronavírus, a frieza dos poucos eleitos que ambularam pelas ruas de Manhattan, Brooklin e outros pontos da cidade, desconfiados e com olhos esbugalhados ao menor ruído de tosse ou espirro alheio, esteve em desacordo pleno, cruel, injusto, com um lugar quase desprovido de identidade, para visitantes e moradores, sem aquele burburinho de maior esquina do planeta em seu quintal.
Nova York tem o dedo enfiado na tomada de 220 volts, 24 horas por dia, todos os dias, por uma conjunção de fatores rara mesmo em outras metrópoles internacionais de grande quilate.
e.
Poucos pontos do mundo chegam perto de ter plataformas simultâneas para ações gigantescas de serviço, turismo, lazer, entretenimento, finanças, mercado de ações, gastronomia, cultura, debate político, esporte, manifestações sociais, consumo e comércio exteriores e por aí vai.
Tudo isso com gente dos quatro cantos do planeta, incluindo brasileiro e, acreditem, nova-iorquino legítimo, nativo da ilha, um ser que até os americanos alegam ter dificuldade em encontrar na cidade.
Por isso, as ações recentes de “ressurreição” da cidade, no processo de reabertura social, econômica e profissional do pós-pandemia, são comemoradas não apenas na cidade ou nos Estados Unidos, mas também por turistas, empresas, executivos, profissionais e gestores da indústria de turismo de todos os cantos do mundo. Em breve, todos esperam que elas cheguem com força também ao turismo.
Nova York permaneceu em lockdown (ou seja, isolamento completo dos cidadãos em suas casas) por mais de 60 dias na primeira metade da evolução da pandemia em território americano. Em 8 de junho, implantou a Fase 1 da retomada social e econômica, com permissão limitada para a entrada de clientes em lojas de produtos de primeira necessidade e funcionamento de setores da produção de bens e construção civil.
Duas semanas depois, em 22 de junho, a cidade entrou na Fase 2, com ativação mais ampla de escritórios, varejo, serviços como salões e barbearias e as varandas de 7 mil restaurantes. Tudo com capacidade reduzida, distanciamento, uso obrigatório de máscaras e forte fiscalização das normas de higiene.
Na segunda-feira, 6 de julho, a Big Apple passou para a Fase 3, com a volta de mais de 50 mil funcionários aos locais de trabalho, prática de esportes coletivos, serviços cosméticos e de cuidado pessoal, recreação externa, espaço para animais e acesso a parques e instalações públicas para caminhar. O atendimento no interior de restaurantes, lanchonetes e famosas delis da cidade permanece vetado.
Apesar da adoção da Fase 3, grande parte dos pontos turísticos da cidade, que atraem gente do mundo inteiro, todos os anos, ainda permanecerá fechada pelos próximos dias ou semanas.
São casos os centros para grandes eventos Radio City Music Hall e Madison Square Garden. E também os teatros de musicais da Broadway. Jogos esportivos e desfiles também estão suspensos ou foram cancelados (leia mais abaixo nesta reportagem quadro sobre as atrações de Nova York reabertas, as que ainda estão fechadas e as com data para voltar a funcionar).
Nova York tem 8,4 milhões de habitantes — e recebeu mais de 67 milhões de visitantes americanos e internacionais, oito vezes sua população, em 2019, último ano fechado antes da pandemia. Entre eles quase um milhão de brasileiros. Um espanto. Para comparação: o Brasil inteiro recebe, em média, sete milhões de estrangeiros por ano.
Com as fronteiras internacionais fechadas, voos limitados e a suspensão da recepção regular de estrangeiros de vários países, inclusive do Brasil, a queda brusca no número de visitantes — e obviamente do dinheiro trazido por eles — poderia gerar certa ansiedade em liberar geral todas as suas atrações e pontos sedutores à invasão dos turistas nacionais e estrangeiros e dos próprios moradores.
Felizmente não é o caso, e o cuidado se justifica. Com 32.395 mil mortes até o final da noite de domingo (12), Nova York está entre as cidades com maior número de vítimas fatais do coronavírus no mundo. Os Estados Unidos lideram o número de casos entre mortes, pacientes assintomáticos e curados, com 3,3 milhões dos 12,9 milhões de registros na mesma data.
O maior vetor de transmissão do vírus foi o sistema de metrô e trens. Como funciona bem e tem boa penetração, é usado por pessoas de todas as classes sociais, moradoras de praticamente todos os pontos de Nova York e regiões vizinhas.
Dessa forma, “espalhou” o coronavírus sobretudo entre o final de fevereiro e o início de abril, quando as medidas de controle ainda não estavam totalmente implantadas e assimiladas pelas pessoas. Táxis e carros de aplicativo, muito usados na cidade, e ônibus também contribuíram para a expansão.
“As liberações são feitas com método, baseadas nos conselhos de pesquisadores e especialistas”, atesta o fotógrafo gaúcho Gabriel Munhoz, 28 anos, morador do Brooklin nova-iorquino e autor das belas imagens usadas no corpo, galeria e filme dessa reportagem.
Munhoz voltou de uma temporada de trabalho na Itália para Nova York no último dia 29 de fevereiro, num momento em que a pandemia castigava os italianos mas ainda dava seus primeiros sinais em território americano.
“Como tinha vivido a situação na Itália, tratei logo de preparar meu isolamento e recomendar a pessoas próximas que fizessem o mesmo”, conta ele. “O problema é que, pela falta de informação, muitos desconfiavam da necessidade de interromper a ida ao local de trabalho ou se isolar em um quarto, por exemplo”.
Pela importância e o fascínio que despertam, os nova-iorquinos criaram questões curiosas na relação com o restante dos americanos desde o início da pandemia. A exemplo do que ocorreu em parte no Brasil, muitos deles buscaram o interior do país, na primeira fase, para passar a quarentena em locais mais tranquilos e baratos. Os custos de vida, moradia e hospedagem em Nova York estão entre os maiores do mundo.
O movimento gerou protestos nas localidades pequenas. De maneira geral, o medo dos interioranos era de que o “pessoal de Nova York” os contaminasse e adoecessem em suas cidades, com estrutura de saúde reduzida.
À medida que a pandemia avançou para o interior, mostrando índices mais amenos nas grandes metrópoles, a situação se reverteu. Americanos do interior passaram a buscar a cidade para passar temporada — e, dessa vez, a preocupação passou para o lado do “pessoal de Nova York”.
As autoridades da cidade e do estado não censuram a vinda de compatriotas de outros estados, mas aconselham que, ao menos por enquanto, ela ocorra apenas em casos de real necessidade e que seja iniciada com uma quarentena rigorosa de, no mínimo, 14 dias.
Outro fenômeno curioso foi a valorização repentina de imóveis em cidades próximas a Nova York. “Um dos efeitos importantes desse novo normal, por aqui, foi a constatação de empresários e profissionais de que, em várias atividades, é possível produzir tão bem, ou até melhor, em casa”, destaca Munhoz.
“Muita gente está entregando seus imóveis alugados ou vendendo suas propriedades em Nova York para viver próximo daqui, em locais com ótimas casas, tranquilidade, segurança, boa estrutura de tecnologia e internet e escolas de qualidade para os filhos”, acrescenta o fotógrafo.
Caprichos, vicissitudes e idiossincrasias geradas numa cidade única, envolvente e poderosa que, para bem do mundo, não pode ter minada sua capacidade de produzir surpresa
Que o tal novo normal não se implante em Nova York destruindo o que ela tem de tradicional, mas altamente belo e sedutor.
Edição: Luciana Mastrorosa
Reportagem: Eduardo Marini
Arte: Matheus Vigliar e Lucas Martinez
Fotos e vídeo: Gabriel Munhoz, de Nova York
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