Professora relembra relação com investigador ao visitar Memorial da Resistência, em São Paulo
"Botei ele pra fora de casa", lembra Eurides, 19 anos depoisDaia Oliver/R7
A professora aposentada Eurides Vieira de Almeida ouviu pela primeira vez, no último dia 22 de março, relatos de pessoas que podem ter sido torturadas por seu ex-marido. A paulista de 65 anos participava do passeio “Caminhos da Resistência”, organizado pelo Sesc Consolação, e não conseguiu segurar a emoção ao ouvir gravações de depoimentos durante visita ao Memorial da Resistência, onde estão preservadas celas do antigo Dops-SP (Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo).
— [A lembrança] Não passa nunca. Ele chegava em casa celebrando: “fizemos mais um presunto”. Eu também me sentia torturada.
Eurides só não ouvia os detalhes das torturas porque tapava os ouvidos nos momentos de congratulação do marido. Mas a professora não conseguiu escapar dos detalhes sobre o que ocorria nos porões da ditadura. Na escola onde Eurides trabalhava, havia um aluno cujo tio também era investigador, e os relatos de torturas com choque e afogamento circulavam pelo colégio.
Dentro de casa, pelo menos, não havia violência física, mas Eurides não esquece da ocasião em que o ex-marido (cujo nome não será revelado, por não ter sido encontrado pela reportagem) lhe deu um tiro, que, por sorte, não acertou o alvo. Enciumado por achar que a mulher paquerava pelo espelho ao se maquiar no ônibus, o policial esperou os dois chegarem em casa para sacar o revólver, que, após o disparo, seria jogado do 23º andar do Copan pela professora, onde o casal morava.
Foram 21 anos de casamento — que terminou há 19 anos. Tudo começou quando os dois admiravam a Taça Jules Rimet, exposta em São Paulo depois de o Brasil ganhar a Copa do Mundo de 1970. Eurides tinha 21 anos, enquanto o rapaz que a paquerou diante da taça contava apenas 19.
— Eu trabalhava no Banco de Boston e ele estudava para ser investigador. Mas eu era contra. Nunca gostei de polícia, de policial. Mesmo assim, ele prestou o concurso, escondido.
Aprovado, o jovem investigador acabaria entrando para a equipe do delegado Sérgio Fleury, chefe do Dops de São Paulo e suspeito de comandar um esquadrão da morte durante os anos do regime militar — o grupo teria executado 200 suspeitos de crime entre 1969 e 1971. Para a tristeza de Eurides, seu receio quanto à carreira do marido se confirmou, e a vida dentro de casa se tornou insuportável.
O marido fazia questão que os dois filhos do casal presenciassem a ação de policiais e o preconceito do policial com negros e mulheres incomodava Eurides. Após anos de relutância, a professora tomou coragem e decidiu se separar.
— Botei ele pra fora de casa. Já estávamos dormindo separados, e ele ameaçava: “se você não voltar a dormir comigo, vou embora amanhã”. Eu respondia: “pois vá embora hoje”. Ele fez um drama, fingiu que estava chorando, mas foi embora. Ainda tentou voltar, dizia que eu ia morar debaixo da ponte, com meu salário de professora. E eu respondia que não tinha problema. Era melhor morar debaixo da ponte do que com ele.
O casal se separou, e Eurides não foi morar debaixo da ponte. Pelo contrário. Conseguiu criar os dois filhos — a mais velha, uma advogada de 39 anos, mora em Miami, nos Estados Unidos, e espera o primeiro filho para este ano. O mais novo, de 31, se formou economista e mora com Eurides, que, ao lado da irmã Elizabeth, aproveita a aposentadoria com cursos de línguas (para poder receber o neto em Miami) e computação, entre outras atividades, boa parte delas no Sesc.
Desde o fim do casamento, a professora aposentada nunca mais encontrou o ex-marido — a não ser por uma única ocasião, durante a eleição de 2012. Eurides era mesária e estranhou quando o eleitor que entrou na sala para votar não respondeu ao “bom dia” de um colega de mesa. Era ele. Na hora de devolver o título de eleitor, o investigador e a aposentada se olharam pela última vez, e, segundo Eurides, nenhum dos dois mexeu um único músculo do rosto.
Informação:R7.com
Registe-se aqui com seu e-mail